A construção de um Catálogo Raisonné

A construção de um Catálogo Raisonné. Texto de Christina Scarabôtolo Gabaglia Penna, Diretora Técnica e Pesquisadora do Projeto Portinari (1979-2016), publicado no Catálogo Raisonné, 2004.

Quando o projeto da edição deste Catálogo Raisonné passou a ser uma realidade, de imediato me veio ao pensamento que tinha como responsabilidade registrar os inúmeros passos que foram necessários para chegarmos até este momento. Senti que, por ser a única remanescente, juntamente com João Candido, da equipe original, portanto testemunha de toda a história do Projeto Portinari, era importante partilhar com aqueles que estão tendo acesso a esta publicação um pouco do making of, ou seja, do processo de construção deste grande acervo de informações.

Pensando em como deveria apresentar essa experiência, me vi relembrando a leitura do livro A emoção e a regra, organizado por Domenico De Masi que muito me chamou a atenção na época em que o li. Na ocasião, fiquei fascinada com os relatos sobre 13 grupos criativos — 12 europeus e um americano — dos mais variados ramos de atividades, tais como a fábrica de móveis Thonet, o grupo literário Bloomsbury, a Bauhaus e a produção da primeira bomba atômica, em Los Alamos. Todos foram grupos bem-sucedidos e apresentaram características organizacionais originais, articulando criatividade e espírito prático. Todos percorreram caminhos autônomos, para não dizer alternativos, organizando e desenvolvendo seus trabalhos de forma coletiva e bem original. Esses grupos eram formados por pessoas fortemente motivadas e reinavam no grupo espírito de iniciativa, confiança recíproca, vontade firme, dedicação, flexibilidade e uma convivência pacífica entre as pessoas, apesar da multiplicidade das personalidades.

Ao término da leitura do livro, concluí que nossa equipe do Catálogo Raisonné também poderia ser chamada de um “grupo criativo”. Desde então, considerei que nossa experiência deveria ser contada, para que pudesse servir de inspiração a novos grupos. E agora, surge essa oportunidade.

O trabalho do Projeto Portinari teve início na Fundação Casa de Rui Barbosa, que cedeu uma sala com janelas que se abriam sobre um centenário e lindo jardim. Nessa sede permanecemos por quase um ano, quando nos mudamos para o Solar Grandjean de Montigny, no campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC-Rio, onde permanecemos até hoje.

Nossa primeira reunião de trabalho foi em 2 de abril de 1979, e a equipe comandada por João Candido inicialmente era formada pelas pesquisadoras Adriana Bianco, Kátia Nunes Machado Braune e eu, Christina Penna — coordenadas por Leonel Kaz, que havia auxiliado João Candido a formatar o projeto original da pesquisa. Nesse projeto, o primeiro objetivo previa localizar e catalogar a obra de Candido Portinari, assim como toda a massa documental relativa a sua obra e vida, de forma a preparar a edição do Catálogo Raisonné, da obra do pintor. Este foi o grande desafio, que demos início naquela manhã de 2 de abril.

Um catálogo raisonné, dentre todos os tipos de monografias e estudos, é a mais definitiva e completa fonte sobre a obra de um artista. Ele é, nas palavras do historiador da arte Francis O’Connor, um dos principais responsáveis pelo catálogo raisonné da obra de Jackson Pollock:

“ ... inicialmente uma imposição de ordem nos restos dispersos da obra de um artista. Uma vez esta tarefa analítica realizada, uma síntese interpretativa pode então ser empreendida com o conhecimento da obra completa. Este catálogo é portanto um instrumento – mas nutre-se também a esperança de que os jovens artistas possam encontrar, em sua ordenação das criações de um grande pintor, um mapa de iniciação às suas futuras realizações.”

Quando o Projeto Portinari iniciou seus trabalhos, estimava-se que a produção de Portinari girasse em torno de 5.000 obras. Hoje, sabemos que a estimativa estava correta, uma vez que até o momento foram localizadas 4.987 obras.

Nossa principal fonte de informação foi D. Maria Portinari, viúva do artista, que organizara, ao longo da vida, de maneira informal, mas com muita competência, os arquivos de correspondências e de recortes de jornais e revistas, assim como também reunira catálogos de exposições, livros, fotografias, filmes e “memorabilia” (material de trabalho, tais como pincéis, tubos de tinta, paletas, compassos etc.), totalizando na época cerca de 15.000 documentos.

A esses documentos somaram-se outras fontes também importantes para darmos início aos trabalhos de localização e catalogação das obras do artista:

> A documentação de um trabalho inicial de catalogação de obras do artista realizado por Flávio Motta, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Toda a documentação que o pesquisador havia coletado nos foi por ele cedida, de forma muito generosa. Constava de pequenos relatórios dando conta de encontros com pessoas do círculo mais íntimo do artista como, por exemplo, Olga Portinari Leão, irmã de Portinari, ou Rosinha Leão e Enrico Bianco, ambos seus fraternos amigos, colaboradores e auxiliares na execução dos grandes painéis e murais, como os trabalhos para a ONU ou para o prédio do Ministério da Educação; e também de listas de colecionadores, acompanhadas de endereços e telefones, que muito auxiliaram na localização das coleções, inclusive daquelas existentes nos Estados Unidos e na Europa.

> A documentação de uma primeira organização das obras remanescentes no ateliê do artista, realizada em 1978 por D. Maria, com a colaboração de Adriana Bianco, museóloga argentina que estava residindo temporariamente no Rio. Essa primeira catalogação era formada de fichas com os dados técnicos de cada uma das obras, além de uma fotografia em preto e branco de cada uma delas.

> Uma preciosa coleção de negativos fotográficos, composta de 600 chapas de vidro realizadas pelo fotógrafo finlandês Kazys Vosylius, que trabalhou para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) nos anos 1930-1940, e que fotografou grande número de obras de Portinari quando estas ainda estavam no seu ateliê. Muitas das obras que nunca foram localizadas pelo Projeto Portinari estão visualmente documentadas nesse arquivo.

> O trabalho precursor realizado por Ralph Camargo com a exposição e catálogo Portinari Desenhista, realizados em 1977, no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, com o apoio de Fernando Caiubi Ariani, e o empenho e incentivo de Edson Motta, diretor do Museu e de P. M. Bardi, diretor do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand. Ralph entrevistou contemporâneos de Portinari, publicando seus depoimentos no catálogo da exposição, que se tornou assim uma importante fonte primária de informações sobre a obra, vida e época de Portinari.

Nas primeiras reuniões da equipe, cada um foi relatando sua experiência profissional. Ficou desde logo claro que não havia experiência anterior no tipo de pesquisa que se estava iniciando. Era algo de novo o que João Candido estava propondo, uma pesquisa que tinha como foco a preservação do patrimônio de bens móveis, preservação entendida no sentido amplo, não apenas no sentido físico de preservar a integridade da obra de um artista, mas no sentido de mapear, tornando-a um instrumento de conhecimento que pudesse ser posteriormente divulgado através dos mais diferentes meios — na época, pensávamos em exposições e livros. Hoje, há, além dos meios convencionais, várias formas possíveis para a divulgação desse tipo de obra: exposições de réplicas, programas de arte-educação, museus virtuais, internet etc.

É imprescindível registrar como foi importante e essencial, desde as primeiras reuniões, contar com o pensamento científico de João Candido, para que chegássemos à definição conceitual do trabalho que ele estava nos propondo desenvolver.

Nesse período, o Projeto contou também com a preciosa colaboração do editor e programador visual Salvador Monteiro, que desenhou o logotipo e a papelaria que nos acompanha até hoje. Foi também essencial a contribuição do “International Council of Museums – ICOM”, nas pessoas de Fernanda de Camargo-Moro e Lourdes Novaes, que nos ajudaram a definir parâmetros e procedimentos museológicos para a nossa catalogação de obras.

Programa Levantamento e Catalogação das Obras

A partir dessas reuniões, começamos a construir o que viria a ser a primeira fase do Projeto Portinari, o Programa Levantamento e Catalogação das Obras. Definimos desde o início que:

> Todas as obras deveriam ser visitadas por uma pesquisadora. Essa seria a única maneira de obtermos a informação mais fidedigna e homogênea sobre cada uma das obras. Estabelecemos que começaríamos pelo Rio de Janeiro, para depois prosseguirmos com a pesquisa das obras que estavam em outros estados brasileiros e daquelas localizadas fora do Brasil.

> Todas as obras deveriam ter um registro visual do mais alto padrão de qualidade, para que formássemos um acervo de imagens que pudesse ser utilizado em publicações, reproduções etc. Para isso, foram contatados dois dos mais experientes fotógrafos da época, Nicolau Drei e Claus Meyer, ambos da empresa Câmara Três, e com eles foram definidos os padrões, os formatos, os tipos de filmes a serem usados e os critérios a serem seguidos, de forma a obter um acervo de imagens o mais homogêneo possível.

Foi definido que os registros seriam feitos deixando-se ver a moldura da obra e incluiriam uma escala-padrão de cinzas e de cores, a fim de servir de base para correções futuras, de maneira a verificar possíveis alterações nas cores originais dos cromos.

> Os cerca de 15.000 itens do material documental existente na época seriam também catalogados, para que fosse possível complementar a documentação das obras catalogadas. Por alguns meses, a bibliotecária Siri Chateaubriand participou do Projeto, auxiliando a definir como tratar esse acervo. Logo depois, outra bibliotecária foi incorporada à equipe, Georgina Staneck. O material foi sendo separado em diferentes arquivos e catalogado de acordo com as normas estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas / ABNT.

Com essa equipe a bordo, estabelecemos que, para levantar e catalogar as obras, era necessário desenvolver metodologias que norteassem nossos passos. Começamos criando as fichas para o registro das obras. Ao contrário da área documental, a área museológica não tem padrões rígidos para a catalogação. Para definir os parâmetros para o nosso trabalho, partimos da experiência de cada membro da equipe, da análise de diferentes exemplos de fichas de museus nacionais e estrangeiros, e de bibliografia especializada.

Durante a visita da pesquisadora à obra, seria preenchida uma ficha rascunho, que posteriormente seria revista no Projeto Portinari, onde seus dados seriam checados e completados, dando origem à ficha de catalogação de obra [FCO]. Esta ficha contém cinco tipos de informações:

> Dados técnicos da obra: tudo aquilo que é possível extrair da obra quando estamos diante dela — título; técnica/suporte; dimensões; data e assinatura; inscrições na frente e no verso da obra, e outras informações, tais como etiquetas, carimbos no verso, no chassi e/ou na moldura;

> Dados sobre a propriedade da obra: um dos itens de maior relevância em relação à qualidade da catalogação da obra de um artista é refazer toda a trajetória da obra, através dos seus diferentes proprietários. Trata-se de um dos aspectos mais importantes quando se busca definir a autenticidade da obra, além de lhe conferir um “pedigree”. Essas informações são obtidas dos proprietários e também por intermédio de documentação (correspondência, periódicos, fotografias etc.). Muitas vezes, o proprietário não tem conhecimento do histórico da obra que possui;

> Dados documentais da obra: nas fichas das obras são indicadas também todas as referências aos documentos catalogados: correspondências e periódicos, reproduções em fotografias e filmes etc.;

> Descrição da obra: esse é um item que normalmente não consta das fichas de museus. Ao inserir esse dado, partimos do princípio de que poderíamos nos deparar com um caso extremo, em que todo e qualquer registro visual de uma obra desaparecesse; neste caso, a descrição seria a única maneira de recuperar parte da informação sobre ela. Com o passar dos anos, essa descrição tornou-se ponto da maior relevância na construção de nosso banco de dados e hoje é a base sobre a qual é possível recuperar uma obra por qualquer elemento que esteja presente na sua descrição;

> Dados sobre o registro fotográfico: nesse item são registradas todas as informações acerca do profissional que fez o registro, a data e o formato desse registro.

A visita aos colecionadores teve início em maio de 1979. Para começar o trabalho, selecionamos três coleções: a do ateliê do artista e as de dois colecionadores muito próximos da família Portinari. Dessa forma, poderíamos testar a ficha que havíamos projetado e avaliar os itens que havíamos definido como importantes para a catalogação. Durante a conversa com o colecionador, deveríamos pedir indicação de outros colecionadores e também ficar atentos para qualquer informação fornecida que pudesse auxiliar no esclarecimento de dúvidas. Além da própria coleção do ateliê do artista, que estava na ocasião sob os cuidados e a guarda de D. Maria, foram pesquisadas as coleções do Dr. Mem Xavier da Silveira, médico e grande amigo de Portinari, e de Olga Portinari Leão, irmã do artista. Com as fichas testadas e aprovadas, após terem sido feitos os acertos que se mostraram necessários, demos início às visitas às coleções públicas e privadas no Rio de Janeiro.

Nessa fase inicial, também foi testada a metodologia para o registro visual das obras. A primeira decisão foi a de que o fotógrafo deveria fazer o registro de uma coleção após a visita da pesquisadora, que traria as informações necessárias a ele. Dessa forma, o fotógrafo saberia de antemão qual o equipamento e o material adequado a ser utilizado. Fomos, assim, aos poucos definindo o processo de fotografação. Nessa área enfrentamos alguns grandes desafios: obras emolduradas com vidros que fazem reflexos; obras que não podem ser removidas de onde estão, ou pelas dimensões ou por terem sido feitas diretamente em paredes. Nesse ponto, é necessário registrar o importante apoio que recebemos da Kodak, que, ao longo de mais de cinco anos, doou ao Projeto Portinari todo o material utilizado pelos fotógrafos, tais como filmes, reveladores e papéis. Vale dizer que não temos notícia de nenhum acervo que tenha conseguido essa homogeneidade no registro fotográfico de suas obras, o que faz do Projeto Portinari uma instituição pioneira nesse aspecto.

Após o levantamento das primeiras coleções, partimos para visitar aquelas que faziam parte das listas de D. Maria Portinari e de Flávio Motta, e também as que foram indicadas pelos colecionadores que íamos visitando. Em 1980, a equipe cresceu com a chegada de Vera Alencar, Maria Lúcia Faria Rodrigues e Lúcia Meira Lima, três museólogas que também se dedicaram ao levantamento e catalogação das obras. Ao longo de todo o ano de 1979 e 1980 realizamos a catalogação das obras levantadas no Rio de Janeiro. Em 1981, decidimos que era chegada a hora de darmos início ao levantamento das obras nos outros estados brasileiros, especialmente em São Paulo, segundo maior polo de concentração de obras do artista.

Para auxiliar na tarefa de levantamento das obras nos outros estados brasileiros, obtivemos um apoio fundamental e inédito no Brasil: as Organizações Globo, através da TV Globo e da Fundação Roberto Marinho, criaram e veicularam em rede nacional chamadas solicitando às pessoas que tivessem informações sobre obras e documentos referentes a Portinari que entrassem em contato conosco. Com a parceria dos Correios, através da cessão de uma caixa postal, recebemos de todos os cantos do Brasil, mais de 3 mil cartas em seis meses. Muitas traziam pedidos de ajuda financeira, ou apoio para um filho que queria estudar pintura, ou simplesmente eram cartas de pessoas que queriam se comunicar com o Projeto Portinari, dando apoio à nossa iniciativa.

Muitas foram as pessoas que nos contataram com informações importantes. A partir dessa campanha, iniciamos o trabalho em São Paulo, que contou com a participação da museóloga Maria Pierina Camargo, que foi a representante do Projeto Portinari naquele estado.

Também em 1981, e ainda como resultado da campanha veiculada pela TV Globo, começamos o levantamento das obras em todo o Brasil. Viajamos nesse ano por mais de dez estados brasileiros.

Com relação ao processo de fotografação das obras localizadas fora do Rio de Janeiro, mantivemos a decisão de enviar o fotógrafo após a viagem das museólogas, de forma que ele já soubesse o que iria fotografar, minimizando-se assim as chances de erros nos registros. Nessa ocasião já estavam fazendo parte da equipe de fotógrafos da Câmara Três que trabalhava para o Projeto Portinari Peter Schneider, Gusmão e Ciro Mariano. A partir de então, passamos a solicitar que os proprietários nos fornecessem slides e negativos das obras, seguindo sempre a nossa orientação quanto aos critérios a serem adotados nos registros.

Nessa etapa de nosso trabalho tivemos outra ajuda também fundamental e inédita no Brasil: a VARIG nos concedeu um grande desconto nas passagens aéreas, assim como nos franqueou o excesso de peso dos equipamentos fotográficos, além de ter feito um grande esforço para a localização das obras, através do trabalho de seu pessoal em terra.

No ano seguinte, 1982, já com o Brasil mapeado, achamos que era chegada a hora de fazer o levantamento e a catalogação das obras que estavam no exterior. Para isso contamos com o apoio fundamental do Ministério das Relações Exteriores, que enviou telex para todas as missões diplomáticas brasileiras, solicitando empenho na localização de obras de Portinari que existissem naqueles países. O retorno foi muito positivo: cerca de 100 obras foram localizadas através de nossas missões no exterior. Planejamos, então, as viagens por grandes regiões: uma para a Europa e o Oriente Médio (Portugal, Espanha, França, Holanda, Inglaterra, Itália, Finlândia e Israel), uma para os Estados Unidos e o México e uma última pela América Latina (Argentina, Uruguai, Peru e Venezuela). Durante nossas viagens ao exterior, contamos com o apoio dos diplomatas brasileiros, que se colocaram à nossa disposição não só para nos acompanhar durante as visitas aos colecionadores, como também para nos ajudar em qualquer necessidade que surgisse.

Ao longo da etapa de levantamento foram descobertas telas como o Baile na Roça [FCO-2305], a primeira obra do artista com temática brasileira, pintada no início da década de 1920, desaparecida desde então, e que o artista procurou localizar durante toda a vida; um pequeno retrato, encontrado com um colecionador carioca, com a inscrição do próprio punho de Portinari: Meu Primeiro Trabalho [FCO-1176], certamente a pintura que ele, Portinari, reconheceu como seu primeiro resultado positivo com os pincéis.

Nosso trabalho, divulgado pela imprensa e também através de colecionadores, museus, galerias de arte e marchands, passou a ser conhecido e reconhecido. Fomos, aos poucos, estabelecendo uma nova mentalidade junto aos proprietários das obras, marchands e galeristas, mostrando que um trabalho como este é importante não só para a compreensão global da obra de um artista, mas também para a sua salvaguarda. O fato de termos mantido sempre a característica de projeto cultural, com foco no inventário e no estudo da obra, vida e época de Portinari, fez com que fôssemos ganhando o respeito profissional necessário para a integridade que um trabalho como este exige.

Programa Pesquisa

A partir de 1982, paralelamente ao trabalho de localização e catalogação das obras e documentos que continuava a ser realizado, demos início ao Programa Pesquisa, que tinha quatro principais objetivos:

> Realizar o Programa de História Oral, reunindo uma coleção de entrevistas com contemporâneos do artista que, com seu testemunho, contribuiriam para aprofundar a compreensão da vida e da obra de Portinari e das preocupações de sua geração. Esse programa gerou um material inédito e valioso para a documentação da obra do artista. Contamos para tanto com o apoio do Centro de Pesquisa e Documentação - CPDoc da Fundação Getúlio Vargas que nos transferiu sua metodologia. A implementação do Programa foi feita por uma historiadora e uma socióloga, respectivamente, Christina Guido e Rose Goldschmidt, e mais tarde, contou também com a participação da historiadora Angela Lessa.

> Fazer o cruzamento de informações entre o material da área documental e as obras. Para isso, foram lidos todos os itens dos arquivos de correspondências e de recortes de periódicos;

> Datar as obras localizadas (inventariadas), pois mais de 30% delas não estavam assinadas nem datadas, e já havia sido definido que a maneira mais adequada de apresentar a obra de Portinari no Catálogo Raisonné seria adotando-se o critério cronológico;

> Estudar a autenticidade das obras uma vez que, à medida que o inventário ia sendo realizado, começamos a nos defrontar com obras que nos pareciam de autoria duvidosa.

À medida que o trabalho de catalogação dos documentos foi sendo realizado, foram surgindo casos de obras que não haviam sido localizadas, mas que tinham registro no rico acervo documental que estava sendo catalogado. Eram obras citadas em cartas ou depoimentos, ou reproduzidas em jornais ou revistas, ou ainda registradas em filmes ou fotografias dos arquivos que estávamos pesquisando. Decidimos então, uma vez que nosso intuito era obter o maior número possível de informações sobre o maior número de obras do pintor, que o mais adequado seria catalogá-las, de modo a incorporá-las ao “corpus” da obra do artista. Inicialmente, foram mais de 400 obras identificadas dessa maneira, que ao longo desses anos foram sendo paulatinamente localizadas. Dessas, 120 ainda não foram localizadas.

Este é o caso do Retrato de João Pessoa [FCO-4922], provavelmente desaparecido na Paraíba durante a Revolução de 1930, cuja única informação que temos é um depoimento oral de Lula Cardoso Ayres, amigo e colega de Portinari na Escola Nacional de Belas Artes, que foi quem levou o retrato do Rio para a Paraíba; e também do retrato do poeta Jayme Ovalle [FCO-4859], no qual, segundo o poeta Dante Milano, Portinari deu sua primeira guinada para o Modernismo.

Outras obras não localizadas, e que compõem o acervo do artista, foram as obras destruídas, a exemplo da Festa de São João [FCO-4082], que integrava o conjunto de três painéis criados para a Feira Mundial de Nova York em 1939, e que desapareceu num incêndio de grandes proporções no Museu de Arte Moderna de Nova York, em 1958, assim como as que foram destruídas no incêndio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978. Também na antiga sede da Rádio Tupi do Rio de Janeiro, foram incendiados seis painéis dos oito que integravam a série Os Músicos. Acreditava-se no início do Projeto Portinari que todos os painéis haviam sido destruídos, mas foi possível localizar em Portugal os dois que se salvaram.

Outras obras foram encontradas modificadas, desmembradas ou recortadas, algumas pelo próprio pintor, como duas telas intituladas Abstrato [FCO-80 e FCO-81], que a pesquisa comprovou serem partes de uma Composição com Figura [FCO-5190] que fora recortada por Portinari. Desmembrado por terceiros foi o biombo de três folhas, representando São Marcos [FCO-2988], Jesus [FCO-1444] e São Francisco [FCO-2987], encontradas em três diferentes coleções particulares.

Foram localizadas, ainda, as maquetes para os figurinos e cenários do Balé Iara, apresentado pelo famoso Original Ballet Russe, de Monte Carlo, no Rio de Janeiro, em Buenos Aires e em Nova York, com enorme sucesso. As maquetes estavam desaparecidas desde a década de 1940, época de sua criação, e foram localizadas na Alemanha, em 1996.

Durante esses 25 anos, a nossa equipe, como todo “grupo criativo”, foi se modificando; alguns partiram por sentirem necessidade de enfrentar novos desafios, outros foram entrando para adequá-la às necessidades que a pesquisa impunha. No entanto, desde o início da década de 1980 estamos com o mesmo núcleo que cuida até hoje das obras e dos documentos, formado por Elisanete Albernaz da Silva (documentos fotográficos e audiovisuais) e Noélia Coutinho dos Santos (obras), em 1982, e Angela Mega e Chagas (documentos textuais), em 1986.

A construção do banco de dados

No início, todo o trabalho foi feito manualmente. Os arquivos foram sendo constituídos por um sem-número de fichas. Mas, já na primeira metade da década de 1980, João Candido foi incorporando ao nosso trabalho as primeiras ferramentas da informática. Foi ele o responsável pela primeira versão do nosso banco de dados. Algum tempo depois, outros professores da PUC-Rio também deram importantes contribuições. Foram eles: Daniel Menascé, Daniel Schwabe e Rosana Lanzelotte. A equipe passa a incorporar um analista de sistemas, Fábio Ruiz, que implementava o que os professores orientavam.

A partir de 1996, a equipe se consolida com a chegada de Luiz Tucherman, que passa a ser o responsável pela concepção, migração e consolidação de todos os tipos de arquivos e pequenos bancos de dados desenvolvidos até então em um único banco de dados. Após a criação desse banco de dados, as pesquisadoras do Projeto puderam pela primeira vez acessar, de forma completa, cada uma das obras associadas com seu registro visual e com todos os documentos e eventos a ela relacionados. A integração entre os registros documentais (correspondências, recortes de periódicos, livros, fotografias, audiovisual, textos etc.), de pessoas e de entidades coletivas e os registros das obras colocou o acervo do Projeto Portinari em uma posição impar na área de arte-cultura. Participaram desse esforço André Arraes, Robson Mattos Guimarães, Daniel Benevides, Paula Ypiranga Guaranys e Carolina Matheus.

Com a construção do banco de dados, o Projeto Portinari pôde construir o seu site na internet, permitindo que a comunidade tenha acesso a todo esse rico acervo multimídia, e também que seja usado o banco de dados como base para o desenvolvimento de outros produtos, entre os quais destacamos o Catálogo Raisonné.

Autenticidade das obras

O problema da autenticidade das obras já nos causava apreensão desde 1981, em primeiro lugar porque somente publicaríamos no Catálogo Raisonné as obras comprovadamente autênticas, e segundo porque ao nos depararmos com os primeiros casos de obras falsas, não tínhamos nenhuma ideia de como agir, o que fazer, nem sabíamos quais os meios que a legislação brasileira nos oferecia para combater os falsários. Foram surgindo casos em que a pouca qualidade dos trabalhos e as escassas e evasivas informações que obtínhamos sobre sua procedência e seu histórico (antigos proprietários, documentação de compra e venda etc.) nos levavam a suspeitar de que se tratava de obras falsas. Verificamos que até aquele momento, no Brasil, não havia nenhum órgão, instituição e legislação que apontasse para um encaminhamento seguro desse tipo de problema. Resolvemos, então, reunir um grupo de pessoas que conheceram bem Portinari e sua obra, a fim de definirmos uma metodologia a ser utilizada em relação à autenticação das obras.

A primeira reunião foi realizada em 1984, em casa do crítico e historiador da arte Antonio Bento, colega e amigo de toda a vida de Portinari, além de autor de um importante livro sobre a obra do artista: Portinari (Leo Christiano Editorial, Rio de Janeiro, 1980 e 2003). Dessa reunião participamos D. Maria, João Candido, o próprio Antonio Bento, o marchand Jean Boghici, o pintor e assistente de Portinari, Enrico Bianco, e eu. Desse encontro saiu o consenso de que deveria ser criada uma Comissão, que se reuniria regularmente, para analisar todas as obras que já haviam sido levantadas e fotografadas. A Comissão, integrada por D. Maria Portinari, Enrico Bianco, Jean Boghici e eu, passou, a partir de 1985 e durante dez anos, a se reunir duas vezes por semana, na sede do Projeto Portinari. Desde então, ela se reúne sempre quando novos casos surgem. Durante essas reuniões através de projeções de slides, todas as obras levantadas foram paulatinamente apresentadas. Em alguns casos solicitamos ver o original, para melhor avaliar o caso. A partir dessas primeiras reuniões, as obras foram separadas em três categorias distintas: obras autênticas, sobre as quais não existe dúvida quanto à sua autenticidade; obras falsas, para as quais existe um consenso de que não são obras da autoria de Portinari; e obras em estudo, aquelas sobre as quais não há suficientes indícios de se tratar de obra autêntica.

Toda obra analisada pela Comissão que não obteve um consenso quanto à sua autenticidade passou a integrar a categoria das obras em estudo. As obras nesta categoria continuam a ser objeto de pesquisa, solicitando-se que o proprietário ou o marchand que esteja de sua posse tente obter maiores informações que possam auxiliar na elucidação do caso. Das obras localizadas pelo Projeto Portinari, hoje, 426 são consideradas falsas e 123 constituem os casos em estudo.

Ficou definido, também, que o Projeto passaria a emitir um atestado para as obras autênticas. Esse atestado foi projetado e desenvolvido pela empresa Thomas De La Rue, especializada em papéis de segurança, que projetou um selo autoadesivo, em duas vias, que é colado no verso de uma ampliação fotográfica da obra. Até a presente data, esse atestado, que é preenchido com os dados técnicos da obra e assinado pelas pessoas que integram a Comissão, foi emitido para mais de 770 obras autênticas. Na mesma época, o Projeto Portinari, seguindo orientação de João Candido, passou a estampar a assinatura do pintor nas obras que não foram assinadas pelo artista (cerca de 30%). Essa é uma praxe adotada e aceita internacionalmente, que se fundamenta nos incisos I a IV do artigo 25 da Lei do Direito Autoral, nº 5.988, de 14 de dezembro de 1973, sendo um dos recursos utilizados pelos especialistas como salvaguarda das obras de um artista. Quando a assinatura é estampada, é emitido um atestado de autenticidade que registra essa interferência na obra.

Foram também estabelecidos os critérios a serem adotados pelo Projeto Portinari que, além da análise da obra pela Comissão, auxiliassem na definição da autenticidade de uma obra:

> traçar o seu percurso, do primeiro proprietário até o atual; identificar de que forma a obra foi localizada; se existe algum documento comprovando a(s) procedência(s) etc;

> conferir se existe documentação sobre a obra, reprodução ou citação em algum documento — recorte de periódico, livro, fotografia de época, filme, catálogo etc;

> recorrer, no caso de pinturas, à análise de pigmentos que, em alguns casos, é suficiente para elucidar casos de obras falsas. Esta técnica de peritagem identifica não só o tipo de pigmento utilizado, mas a época em que o quadro foi pintado, e nos foi sugerida por três importantes restauradores e professores: Edson Motta Júnior, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luiz Antonio de Souza, do Centro de Conservação da Universidade Federal de Minas Gerais e Gilson Cruz de Oliveira, da Universidade Federal Fluminense, este último, infelizmente, já falecido.

O Projeto Portinari esteve envolvido em alguns casos emblemáticos e que muito ajudaram a definir os caminhos e procedimentos que deveríamos tomar. A atitude firme e corajosa manifestada por nossa equipe e amplamente divulgada pela mídia, não só nos consolidou como núcleo de salvaguarda da obra do pintor, como também contribuiu bastante para uma mudança no mercado de arte, que se refletiu na atitude dos marchands que passaram a verificar com mais frequência se as obras a eles oferecidas já se encontravam catalogadas, minimizando assim as chances de estarem negociando obras falsas, o que gerou uma retração do mercado com relação a este tipo de obra.

É dessa época o nosso primeiro contato com o dr. Luís Guilherme Martins Vieira, advogado criminalista que passou a colaborar conosco, orientando e nos dando suporte quanto aos caminhos e decisões que devemos tomar em relação às obras falsas.

A edição do Catálogo Raisonné

Ao chegar a oportunidade de finalmente entregar à sociedade o Catálogo Raisonné, objetivo principal do Projeto Portinari, mais uma vez tivemos que ser inovadores. Estávamos diante de novo desafio, talvez o maior que pudesse se apresentar: como produzir em apenas dez meses o Catálogo Raisonné da obra de Candido Portinari, uma coleção de cinco volumes com cerca de 512 páginas cada um, além de um CD-ROM com ferramentas de recuperação?

A esse desafio se somou outro: como publicar um Catálogo impresso, acompanhado de um CD-ROM, e manter o banco de dados do acervo no mesmo nível de atualização? Era imprescindível que qualquer modificação na versão impressa levasse à atualização no banco de dados, de forma a que o CD-ROM registrasse essas alterações. Este sincronismo para nós é de fundamental importância, pois o banco de dados é a base principal para a divulgação do acervo do Projeto Portinari, quer sob a forma de site na internet, quer sob a forma de CD-ROM etc. Normalmente, uma publicação deste gênero é sempre feita a partir de arquivos de textos.

Para resolver esse segundo desafio e tornar possível a produção dentro do prazo proposto, tomamos a decisão de fazer com que o banco de dados fosse o fiel depositário de toda informação a ser impressa no Catálogo. Isso implicava que a partir do banco de dados seriam gerados os arquivos textuais contendo todos os verbetes das obras que passariam por uma análise e revisão editorial. Após essa fase, todas as alterações feitas nos arquivos textuais são atualizadas no banco de dados, permitindo assim o sincronismo entre o banco de dados e os arquivos usados para a impressão.

Para fazer frente a esse desafio convidamos a programadora visual e editora Regina Ferraz para cuidar de todas as etapas editoriais do Catálogo. As seguintes atividades foram realizadas: revisão da cronologia da obra, normatização e revisão de todo o conteúdo do banco de dados, versão para o inglês e copidesque de todas as informações bilíngues do Catálogo e verificação da consistência entre os diversos campos textuais do banco de dados. Após cada uma dessas atividades, o banco de dados era atualizado de forma a refletir as alterações e os verbetes das obras, juntamente com todas as suas referências bibliográficas, eram gerados em arquivo digital. Ao final do processo editorial, os arquivos digitais contendo os verbetes eram entregues à programadora visual para a diagramação e a colocação das imagens das obras.

Todo esse trabalho foi feito em paralelo com a atualização normal do banco de dados, pois o dinamismo da aquisição de informações sobre a obra de Portinari não para. Todos os dias novos artigos de periódicos, livros, catálogos de exposições e leilões chegam ao Projeto e são imediatamente atualizados no banco de dados. Além destas informações, com a divulgação pela mídia da publicação do Catálogo Raisonné, um número considerável de obras novas bem como novos registros visuais de obras já catalogadas passaram a chegar ao Projeto para ser catalogados.

A decisão tomada, apesar da sua complexidade, se mostrou acertada, pois conseguimos manter o banco de dados permanentemente atualizado e sendo a base da geração dos verbetes das obras para o Catálogo Raisonné.

Um outro grande desafio que sempre nos perseguiu foi: como poderíamos preservar o acervo fotográfico do Projeto Portinari? Este desafio se deve ao fato de que, ao longo do tempo, os cromos, negativos e fotografias vão se deteriorando e a perspectiva de se voltar ao proprietário para fotografar a obra outra vez é mínima.

A necessidade de digitalizar o acervo fotográfico para a publicação do Catálogo, nos levou a incluir no projeto editorial a digitalização desse acervo, em altíssima resolução e fidelidade cromática. Com isso, não só estaríamos atendendo à publicação do Catálogo, como também criando um grande acervo de imagens em arquivos digitais de alta resolução a partir do único registro visual existente da obra completa de Portinari.

É desnecessário destacar a importância desse acervo digital para a salvaguarda do patrimônio artístico-cultural nacional, considerando-se ainda o custo já investido para reuni-lo ao longo de 25 anos.

Assim, iniciamos o processo de digitalização do acervo fotográfico de forma a criar os arquivos digitais em alta resolução, garantindo que todas as imagens digitais fossem analisadas individualmente e certificadas pelo Projeto Portinari. A partir desses arquivos digitais, as imagens das obras foram reduzidas de acordo com o tamanho definido para o Catálogo Raisonné.

É lógico que um “grupo criativo” deve ter o suporte de um excelente time administrativo. Não podemos deixar de reconhecer os esforços de todos aqueles que passaram pela área administrativa do Projeto e que contribuíram para o sucesso da publicação do Catálogo. Entre eles, Maria do Carmo Alves, Solange de Oliveira e Almeida, Rita Gaivão, Roseane Macedo, Daniela Murta, Maria de Fátima Nunes Pereira, Edmar Barbosa Amorim e Reinaldo Oliveira Santos.

Certamente, alguns nomes não foram citados e quero me desculpar desde já. É certo que todo este trabalho só pôde ser realizado pelo Projeto Portinari contando com o apoio da sociedade brasileira, que por diversas vezes foi chamada a participar do nosso esforço.

Sinto-me orgulhosa de ser parte deste “grupo criativo”, que espero que venha a servir de inspiração e estímulo para outros. A todo este “grupo” muito obrigada!

 
APOIO
PATROCÍNIO
REALIZAÇÂO